sábado, 6 de agosto de 2011

POBREZINHOS DOS MENINOS RICOS


Quando eu era menino, eu tinha, como todos os meninos, muitos questionamentos, até porque, naquela época as informações eram muito difíceis de chegar e quando chegavam, através de rádios, de quem os possuíam, ou dos jornais velhos que os funcionários públicos traziam de suas repartições, ainda corriam o risco de não serem entendidas pelos adultos, imaginem para as crianças. Portanto, os nossos questionamentos ou só seriam respondidos com o tempo, ou jamais teriam respostas. Mas o meu principal questionamento, que nos tempos de hoje ele poderia ter resposta, em função do aumento da criminalidade, ficou, na época, sem resposta. O qual era: por que os meninos ricos não tinham direito de brincar nas ruas?

Éramos, e ainda somos, de uma família pobre. E quando pequenos essa pobreza era ainda maior, porque as carências também eram maiores. Meu pai, um funcionário público estadual de nível básico. Minha mãe, uma costureira de pequeno ateliê improvisado no próprio domicílio para atender as demandas sazonais de costura de uma clientela pobre que só usava roupa nova nas quatro festas do ano.

Portanto, meu pai, minha mãe e seus cinco filhos, todos pequenos e quase na mesma idade, com diferença de um ano apenas entre suas faixas etárias, vivíamos com essa parca renda que só dava para o estritamente necessário, tornando grande a carência material em quase todas necessidades, mas, ao mesmo tempo, graças a Deus, tínhamos tudo, porque, tínhamos, e temos, os valores espirituais necessários para uma família ser feliz, que é compreensão, coerência, harmonia, solidariedade e muito amor. Muito amor e muita alegria, com todos os membros da família, com todas as pessoas e com tudo que é do bem, que edifica, que constrói.

Nós nos reuníamos na calçada da frente de casa, todas as noites, após o jantar, e após, naturalmente, todos terem lavado as suas próprias louças do jantar, (porque todos colaboravam nas tarefas domésticas e naquela época os pratos e panelas eram feitos de ferro e revestidos em ágata branca, uma substância sílica, aderente a peça, que só se desintegrava se fosse submetida a fortes pancadas e era fácil de serem lavados, bastando esfregá-los com uma bucha vegetal, água, sabão e pronto, estavam limpos). Sentados na calçada, conversávamos sobre assuntos da família e outros assuntos. Minha mãe contava histórias de Trancoso, (histórias atribuídas ao escritor português do século XVI, Gonçalo Fernandes Trancoso, que contava histórias fantasiosas, meio mentirosas, mas de cunho educativo), fofocávamos, riamos de todas as coisas, como se a vida fosse um grande circo e depois dessa interação familiar, nós, os meninos, íamos para a rua brincar com a molecada.

As outras famílias da mesma classe social faziam a mesma coisa. Todos se sentavam isoladamente em suas calçadas, conversavam seus assuntos e riam do que gostavam de rir e depois a meninada se espalhava pelas ruas para as nossas mil e uma brincadeiras e os adultos iam para as outras calçadas conversar, fofocar e rir.

As famílias de melhor renda também iam para as suas calçadas, mas se sentavam em cadeiras e logo se recolhiam às suas casas e raramente conversavam com outras famílias e não deixavam seus filhos se juntarem com os moleques da rua.

Éramos todos felizes. A nossa família e as demais famílias pobres do bairro porque essas famílias sabiam interagir entre si e entre as outras famílias, sem máscara, sem medo, sem nada a esconder, sem preconceitos, sem ódio e, sobretudo, sem inveja um dos outros, muito pelo contrário, uns ajudavam aos outros, no intuito de que todos crescessem juntos.

A meninada pobre ganhava as ruas sem repressão de seus pais, sem cobranças e sem limites, como que por premio pelo cumprimento de suas jornadas escolares. E o bairro de Cruz das Armas era pequeno, dali por diante, para as brincadeiras e travessuras da molecada que de tudo brincava: bola de gude; empinar coruja; (hoje soltar pipa); colecionar e colar figurinhas num álbum; esconde-esconde; pião de ponteira, jogar pelada no meio da rua com bola de meia; ferro de finca; andar a cavalo num cabo de vassoura; brincar de gladiadores com espada de pau; brincar de queimado, (com bola de meia); brincar de rendido, (com um revólver de madeira, ligas e carretel de linha e ao ver-se o "bandido" gritava-se “mãos ao alto”, mas a pronuncia ficava “manzualto” ou “manzua”, daí, acreditamos, a posterior denominação da Operação Manzuá da Policial Militar Paraibana); brincar de carrinhos e patinetes feitos de rolimãs; caminhão feito de lata de óleo vazia com pneus de sandália havaiana velha; rodar um pneu velho pelas ruas impulsionado com um pedaço de cabo de vassora; fazer jangadas de palitos de picolé e barquinhos de papel e coloca-los numa bacia com água; catar tanajura nos dias de chuva, (cantando: “cai, cai tanajura que é tempo de gordura”); matar moscas com ligas ou tiras de câmara de ar; andar sobre dois quengos de coco ou de latas vazias de leite ninho; brincar de telefone com duas latas vazias de quitute presas a um cordão; sair correndo com um cata-vento de cartolina; montar em pernas de pau para brincar de circo; brincar de mela-mela com maisena e lança d’água no carnaval; fazer e/ou roubar Judas na Páscoa para "matar o Judas"; soltar bomba de cordão, bomba rojão, busca-pé, bufa de veia e bomba em baixo de uma lata nas festas de São João; guerrear com caroço de mamonas; caçar passarinho com baleeira, (também chamada atiradeira ou estilingue); fazer gaiola de passarinho com palitos de folhas de conqueiro com bambu ou palma, (cacto); esculpir animais de brinquedo com argila das barreiras do rio; tomar banho no rio Jaguaribe; (na época era despoluído); roubar caju nos sítios; assar castanha no quintal; subir nos pés de mangueiras da Av. João Machado e outras ruas para chupar manga; tomar banho no Sampaio, (olho d’água ainda hoje existente na Fazenda da Graça); roubar coco na Fazenda da Graça, (área de propriedade da então fábrica de cimento Portela, hoje CIMPOR); morcegar nas carrocerias dos caminhões carregados; saltar das marinetes em movimento; alugar bicicleta para descer disparado na Ladeira da Graça, na Ladeira da Pacote e na Ladeira do Varjão e outras brincadeiras e travessuras.

As meninas também brincavam muito, mas sem travessuras e com as brincadeiras delas, sem saírem de suas ruas para brincar em outras ruas do bairro. Também brincavam de vários tipos de brincadeira como: pular academia ou garrafão, (vários quadros riscados no chão com carvão ou caco de telha, onde jogavam um caco de telha e saiam pulando quadro a quadro com um pé só, até alcançar o quadro em que estava o caco de telha); cantigas de roda; passar anel, (passar um anel de mãos em mãos das meninas de um grupo e deixá-lo nas mãos de uma das meninas para que as meninas do outro grupo adivinhassem em que mãos ficara o anel); pular corda; rodar bambolê; brincar com bonecas de pano; brincar de casinha, brincar de fazer cozinhado para as festas de aniversário das bonecas; costurar as roupas das bonecas; brincar de seu rei mandou dizer; cabra-cega; jogar peteca, (feita com de penas de ave); iô-iô; cama de gato, (emaranhar um cordão nos dedos das mãos para construir figuras geométricas); búzios, (jogar uma bola de gude para o alto e movimentar umas conchinhas do mar enquanto a bola voltava sem deixá-la cair no chão; falar numa linguagem de códigos que só elas sabiam decifrar, (por exemplo, criava-se o código “ga-de-ri-po-lu” e substituia-se por “ga” todas as sílabas terminadas em “a”; por “de” todas as sílabas terminadas em “e” por “ri” todas as sílabas terminadas em “i”, etc. Se a palavra fosse “xarope” seria pronunciada “garode”).

Os meninos respeitavam as brincadeiras das meninas mas não queriam participar delas, exceto os meninos efeminados que preferiam as brincadeiras das meninas, se bem que eles não eram discriminados pelos outros meninos, pelo contrário, eram convidados a participar das brincadeiras dos meninos, mas eles recusavam porque não gostavam dos tipos de brincadeiras, preferindo as das meninas, onde também eram bem aceitos, tratados sem discriminação e as meninas adoravam conversar com eles.

Os meninos só tinham curiosidade pelas brincadeiras das meninas quando se tratava da linguagem codificada, porque ficavam tentando descobrir o código silábico para, consequentemente, descobrir os segredos das meninas. Não para brada-los em público, expondo-as ao ridículo e nem para tirar qualquer proveito disso, mas por curiosidade apenas e para exercitar seus espíritos de detective, o que, sem dúvida, não deixava de ser também uma brincadeira. Mas tudo era feito com muito respeito, porque o respeito estava, naquela época, acima de qualquer outra coisa, embora existisse, é claro, aqueles moleques mais safados que faziam algumas fofocas quando descobriam os segredos das meninas, mas no geral, sempre predominava o respeito entre os lados meninos e meninas, rapazes e moças, pais e filhos, jovens e idosos, etc.

Essa molecada se juntava em turmas e cada turma tinha um lider que pelo nome do qual era a turma conhecida. Não que fossem turmas rivais, mas que cada uma tinha as suas preferencias ou restrições sobre determinadas travessuras. Por exemplo, a turma do Paulinho não roubava mais coco na Fazenda da Graça porque já fora pega várias vezes pelos guardas e já estava manjada. A turma do Zezinho não só roubava coco como também os vendia na feira de Oitizeiro e as outras turmas preferiam não acompanha-la porque não concordavam com essa prática. A turma do Pedrinho não jogava pelada no campo do Bariri, no Cristo, porque não podia passar em um certo trecho da Rua do Rio porque já fizera uma bagunça num Xangô e a turma estava ameaçada pelo Pai de Santo. E assim era a molecada. Sempre aprontando, sempre brincando, mas sem deixar de estudar, de cumprir suas tarefas escolares, sem deixar de passar de ano, de competir nas sabatinas, (num sábado de cada mês, os professores dos colégios públicos organizavam competições entre os alunos dos colégios que quisessem participar, onde os alunos de um colégio faziam perguntas, sobre temas previamente selecionados, aos alunos de outro colégio, e vice-versa, para que fossem avaliadas as capacidades dos alunos e o nível dos colégios. As pontuações recebidas pelos alunos nessa competição, denominada sabatina, serviam de notas para o bimestre dos alunos).

Todas essas turmas eram de meninos pobres. Uns mais pobres e outros menos pobres, mas todos pobres. Os meninos ricos, (nós assim os chamávamos, mas a maioria deles era de classe média), não se juntavam com os meninos pobres, não por vontade deles, mas porque os seus pais os proibiam de tudo. Até para os seus colégios, que eram da rede privada e se situavam todos no centro da cidade, eles não iam de marinete. Iam e vinham com seus pais, em carros próprios.

Nos horários de folga, à noite, aos sábados, domingos e feriados eles sempre ficavam dentro de suas casas ou de seus muros, (jardins), observando-nos de longe, pelas grades dos portões, com os seus semblantes sempre tristes, querendo participar das nossas brincadeiras que não lhes eram permitidas. Essa situação me causava uma profunda compaixão daqueles garotos.

Quando nós íamos chupar manga nas mangueiras da avenida João Machado, eu ficava observando aqueles meninos tristes, calados, cabisbaixos, de olhar perdido, dentro dos jardins daqueles casarões cercados por muros ou grades de ferro, situados na avenida João Machado, rua das Trincheiras e cercanias, onde hoje estão transformados em repartições públicas, clínicas, consultórios, hospitais, ou foram demolidos para dar lugar a outras construções, como o Centro Administrativo do Estado da Paraíba, por exemplo, ou se encontram abandonados e invadidos pelos sem teto. Eu os observava profundamente compadecido de suas tristezas e achava-os parecidos com Dom Pedro II, porque eu tinha uma professora de história, muito estudiosa e dedicada as histórias de Dom Pedro II, que nos contava que o Imperador do Brasil, Dom Pedro I, pai de Dom Pedro II, o havia deixado aqui no Brasil quando ele tinha apenas seis anos de idade, juntamente com duas de suas irmãs e partiu com suas outras irmãs e sua madrasta Amélia Leuchtenberg, para Portugal, para assumir a Coroa Portuguesa, deixando sobre a cama do filho a sua coroa de Imperador do Brasil, a mesma que o menino iria usar quando, na maioridade, assumisse o trono de Imperador do Brasil.

Para um menino de apenas seis anos de idade, órfão de mãe, pois Dona Maria Leopoldina, sua mãe, falecera quando ele tinha apenas um ano de idade e seu pai casara-se com Amélia Leuchtenberg, quando ele tinha três anos de idade, portanto ele a tinha como mãe e ve-los partir assim, inopinadamente, foi para ele o primeiro dos grandes choques de sua vida.

Mas o pior ainda estaria por vir, pois, embora tivesse Dom Pedro I escolhido três tutores de sua confiança para cuidar do pequeno Imperador, a Assembléia Geral do Império exigia de seus tutores uma educação super rigorosa para o menino, não só pela sua condição de futuro Imperador, mas, talvez, para mante-lo afastado, enquanto menino, dos desmandos que as juntas governamentais provisórias faziam no governo enquanto aguardavam a maioridade do menino. E essa educação rigorosa o obrigava a se levantar às seis horas da manhã, tomar rapidamente a primeira refeição do dia e entrar em sala de aula, onde os professores já o esperavam, e de lá só saia as dez horas da noite, com apenas duas horas de intervalo para brincar no jardim do Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, sozinho, ou com os filhos dos empregados do palácio e uma hora para almoçar com as suas duas irmãs.

Nos contava a nossa professora que ele era um menino muito triste, muito calado e que muitas vezes chorava sozinho num canto da casa, sem dizer a ninguém o motivo do choro.

Esse fato marcou muito a minha vida e eu via nos meninos ricos presos em seus jardins a mesma tristeza do pequeno Imperador, triste, infeliz, preso dentro de um enorme casarão sem alegria e, pior ainda, sem ter cometido crime algum que justificasse esse castigo.

Por isso, na minha infância, eu me questionava o porque dos meninos ricos serem proibidos de brincar na rua, porque, para nós, isso só acontecia quando estávamos sendo castigados, pelos nossos pais, por termos feito alguma coisa muito ruim ou muito errada, (como não passar de ano, por exemplo). E o castigo de não irmos para rua por algum tempo era, diga-se de passagem, o pior castigo que podíamos ter. Por isso, ainda hoje, eu tenho uma certa aversão as mansões, quaisquer que sejam elas e vibro intimamente quando passo pela rua das Trincheiras e vejo aqueles casarões velhos, abandonados, castigados pelo tédio que causaram, com suas portas quebradas, muros caídos, invadidos por famílias pobres, e seus moleques brincando alegremente e sem tédio com os materiais de reciclagem que seus pais, invasores, amontoam no quintal e nos antigos jardins dessas velhas mansões, diferentemente dos pobrezinhos dos meninos ricos que ali moravam e dali assistiam, tristemente, os moleques fazendo na rua o que fazem hoje dentro de suas antigas e tediosas mansões.

Nenhum comentário:

Postar um comentário